Entrevista com Paulo Benedetti
Leia abaixo a única entrevista disponível com Paulo Benedetti, extraída da Revista Cinearte, em 1929.
Por Ricardo Rios, da Redação TVBQ Documento
Paulo Benedetti e o Cinema Brasileiro
Com esse exagero de modéstia que caracteriza os verdadeiros valores, Paulo Benedetti ha muitos dias vinha fugindo da nossa curiosidade. E nem por fugir delta se esquivava de nós, recebendo-nos sempre com a sua cordialidade de poucas palavras, mas de sinceridade envolvente. Mas o seu grande amor e o seu devotamento maior ainda pelo Cinema Brasileiro, obrigaram-no a falar e a vencer todas as resistências da modéstia excessiva.
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Entrevistar Benedetti é tarefa difícil por que quanto ele tem de dócil em abrir as portas de sua casa e as da alma, tem de rebelde em conversar. Por ele - e isso se lhe adivinha nos olhos dominadores - a palavra seria relegada a um plano secundaria e a humanidade se entenderia mecanicamente por meio de aparelhos que resumissem milhares de expressões num só movimento. E só mesmo por não dispor de outros recursos mais práticos para se exprimir é que ele usa a palavra. E usando-a com parcimônia, é verdade, o inseparável cachimbo nas mãos, Benedetti tentava, mais uma vez, excusar-se ao nosso interrogatório. Em vão ele nos embriagou os olhos no panorama da cidade, no deslumbramento da Guanabara e no poema dos morros em redor que dali enchem os olhos e a alma da gente das mais fortes emoções. Debalde ele nos distraiu o espirito mostrando-nos os caprichos da Natureza Que fazem de um morro um altar e de um caminho banal uma espiral de sonho - caminho e morro que galgaremos para chegar ali! Víamos tudo, sim, o mato lá em cima, no cume da elevação, vestido do mais lindo verde, lá ao longe, rebrilhando ao sol que morria, o mar. Mas o que ansiávamos por ver Benedetti tardava de nos mostrar, só o fazendo agora que cruzava as pernas, saboreava o cachimbo e deitava o olhar lá para o azul do céu, evocando todas essas imagens de um ontem muito longínquo que a nossa curiosidade o forçava a buscar...
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Já lá se vão nada menos de trinta e dois. . E ali em nossa frente, o pensamento vagando nos longes da recordação. Benedetti se transportou a 1897 quando, vindo de Luca.
Itália, onde teve como professor um tio de Del Prete, o glorioso infortunado, chegou ao Brasil. Moço e temperamento ardente, voltado para as sensações das aventuras vinha explorar o gás de acetileno. Aqui, vencendo galhardamente as hostilidades do meio para ele desconhecido, montou uma fabrica de aparelhos para uso do gás, adquirindo logo, largo círculo de relações. Em pouco conseguia fazer a iluminação de um extenso trecho da Central do Brasil e daria ainda maior impulso á sua empresa se não fossem as exigências do seu temperamento irrequieto que o levaram a tudo abandonar na ânsia de sensações novas com os negocies novos e indiferente ás seduções do interesse.
- Para onde foi?
- Para São Paulo...
Mas a essa altura - ele continuou contando - a ideia do Cinema começava a absorvê-lo, a torturar-lhe o espirito e a enchê-lo de sonhos levando-o a tornar-se exibidor. E como tal, instalou na Rua Libero Badaró o "Cinema Japonez", atraindo a curiosidade de grande parte da população paulista pela novidade surpreendente que ele encerrava.
Corria, então, o ano de 1905 e Benedetti que ganhava seus meios de subsistência com os "filmes" japoneses que ia exibindo com sucesso, voltava toda as preocupações do seu espírito e todos os lampejos da sua inteligência para o sonho de engendrar o que ele chamava de "commentario musical synchronizado". Havia de ser possível, calculava ele, harmonizar os ritmos de uma musica com os quadros do "filme" animando-o mais ainda e dando-lhe a beleza do som, que mais expressão lhe emprestaria á beleza do movimento. E de simples ideia, o "comentário musical sincronizado" já se ia tornando uma realidade, a pouco e pouco no silencio do laboratório quando a notícia dos sensacionais inventos de Edison se espalhou pelo mundo. Isso somente bastou para desanimar Benedetti. Na sua timidez não compreendia que a gloria do outro não lhe empanaria a sua: que assim como Edison, inspirado na centelha divina que iluminou o cérebro fez aquela conquista, ele podia fazer a sua. E indeciso, vencido pelos próprios escrúpulos, Benedetti continuou na penumbra da vida que levava, eclipsando no mero exibidor de filmes o inventor iluminado que ele é... É bem verdade que mesmo com uma forte dose de descrença, Benedetti continuou fazendo suas investigações, seus estudos e suas experiências! E numa explosão de franqueza ele se interrompeu para exclamar:
- E a ideia do "comentário musical sincronizado" me nasceu no cérebro por causa da falta de harmonia que não poucas vezes observei entre a música, que a orquestra toca e o filme que corre na tela! Às vezes desenrola-se um drama e a orquestra enche os ouvidos da gente das notas de uma musica alegre!
E sacudindo a mão direita á frente do rosto: Horrível!
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Benedetti, a alma voltada para as reminiscências subtis, agora que vencemos uma pausa de instantes, se transportava não a São Paulo, de onde arribara já, mas para o interior mineiro. Longos anos ele andou de terra em terra com o seu Cinema ambulante, fazendo um pouco dessa vida de circo tão cheia de encantos e de desenganos, assombrando populações inteiras em lugares onde o Cinema aparecera pela primeira vez.
- E naqueles tempos, dizia ele textualmente, uma fita de duas partes era um assombro. E eu quase que só tinha fitas de duas partes.
Agora, depois de um longo silencio: - A vida era, então, uma luta difícil... Ocasiões havia que todas as vicissitudes me assaltavam ao mesmo tempo.
-Sim...
E ele medindo palavras quase os olhos brilhando, continuou desnovelando suas recordações.
Um dia na sua peregrinação de sempre colheu ótimos resultados com o seu invento sem baptismo ainda. Havia chegado na véspera em Barbacena. E ali mesmo em Barbacena exibiu o primeiro filme sincronizado que o Brasil já assistiu! E isto no anoitecer de 1910... "Uma Transformista Original" - esse o nome do "filme" sensacional - causou verdadeiro espanto porque ele mesmo tinha a sua musica própria! E o que mais impressionou foi a circunstancia da música ser um pouco da fita, ter nos seus sons a visão que ela oferecia! Dir-se-ia que por um desses milagres da força de vontade do homem os quadros da fita, sofrendo uma operação delicada, se transformaram em notas musicais, pois de outra maneira era impossível compreender tanta harmonia e ligação tão íntima entre o movimento que viam e o som que escutavam!
- Em que reside a alma do seu original invento?, interrompemo-lo sem dominar os ímpetos da nossa curiosidade, ao que ele respostou, sem se alterar:
- Espere um pouco, já chegamos lá.
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1917. E Benedetti instala o seu laboratório no Rio de Janeiro, pronto para lutar. O sucesso do "comentário musical sincronizado” animara-o muito, fazendo-o reaver todas as esperanças perdidas, se bem que nele reconhecesse defeitos... Mas ele já representava uma conquista por todos os títulos notável, carecendo, é certo, de aperfeiçoamentos que com o tempo sobreviriam. E fez, logo, o filme de reportagens “Cruzeiro do Sul”, dando, em seguida, uma série deles.
- E nessas cenas de rua que "filmou" não teria ocorrido algum facto chistoso ou triste, de que ainda se recorda? Indagamos, agora que ele continuava as reticências num longo olhar sobre a cidade lá embaixo.
E ele, quase sorrindo:
- Lembro-me de um, sim... Foi até na Praça da Bandeira. O orador subira à tribuna improvisada e começou o discurso... Mas fê-lo tão desastradamente que os assistentes, pensando que ele estava divorciado das ideias ali dominantes, começaram a protestar. E como o orador insistisse, agrediram-no.
E já sorrindo:
-... E eu que estava procurando apanhar o primeiro plano, me vi envolvido no turbilhão da multidão em fúria, salvando, a custo, a máquina.
- Parece que ainda estou vendo as folhas de papel do discurso do orador tintas do sangue que lhe escorria do rosto... Oh! Homenzinho renitente! Ficou todo machucado... Mas salvou o discurso!
Benedetti, sem desfazer seu lindo sonho, continuava no terreno da realidade, lutando. Contratado para filmar "Iracema", inspirado na obra de José de Alencar, Benedetti desenvolveu todo o seu habitual trabalho de sempre, fazendo, logo a seguir, "O Garimpeiro", no qual brilhou o talento artístico de Lucia Tiburcio e onde, pela primeira vez, foi apanhada uma cena pelo reflexo dentro d'água. Foi até vaiado por isso, pois as figuras apareciam em sentido inverso. Daí para cá, Benedetti resolveu "filmar" por conta própria, certo de que a fortuna não lhe sorriria, mas convencido de que podia fazer coisa melhor... E, assim, pensando, fez por experiência, a "Gigolette", com Jayme Costa, Amelia e Arthur de Oliveira. Não teve nenhum êxito financeiro, mas o sucesso artístico, para o seu espírito desinteressado, foi o bastante, pois mal acabava a "Gigolette" dava início ao "Dever de Amar", conseguindo, nessa nova etapa, reunir Aurora Fulglda, Amelia de Oliveira e Teixeira Pinto! Novas lutas, novas canseiras, vigílias e dissabores sem conta. Tudo quase pronto - ah! Isso acontece tantas vezes! - e lá falhava um simples detalhe que anulava soma considerável de esforços. Animo inquebrantável, expressão viva da teimosia e da persistência, Benedetti recomeçava, sorrindo, sem uma palavra de ódio e sem um gesto de cólera! De novo ele colhia um triunfo no esforço, mas de novo sofria um revés financeiro, e longe de se emendar e de se deixar colher pelo desanimo, mais e mais se encorajava, indo buscar em cada insucesso um incentivo, e em cada derrota um Impulso novo para vencer. Veio-lhe a ideia de fazer a "Esposa do solteiro" e, sem demora, com auxilio de Carlos Compogaliani e Letícia Quaranta fez, conseguindo apresentar o filme mais luxuoso e mais dispendioso até hoje elaborado no Brasil. Mas, para a sua imaginação sedenta de perfeição, tudo feito precisava de retoque e dar esse retoque em filme conhecido seria trabalho inútil. Foi quando surgiu a luminosa ideia de fazer o "Barro Humano". Aceitou-a mais para auxiliar a campanha de "Cinearte" pelo Cinema Brasileiro. A sua longa experiência, de mãos dadas com os orientadores desta revista, seria pelo menos, a garantia de um bom filme! E começou, então, a filmagem do "Barro Humano"...
É o próprio Benedetti quem fala:
- "Barro Humano" está, de facto, melhor, muito melhor, que os outros meus filmes, mas...
E deixando a mão cair, pesada, sobre a perna:
-... ainda não é a perfeição que sonhei! O que faremos já no próximo filme.
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Abordávamos, agora, o assumpto palpitante para nós: o Cinema Brasileiro!
E Benedetti, com aquele jeito seu de avarento de palavras, nos abriu a alma, sacudindo a cabeça, uma sombra de tristeza no rosto:
- Não calcula os empecilhos! Quase tudo é impossível e tudo é difícil, mesmo em se tratando de ensaios, pois nada mais do que ensaios já se fez. As dificuldades começam na alfândega! Imagine que o filme virgem que custa uma ninharia lá fora, aqui no Brasil é caríssimo.
E, mais e mais animado:
- Só de impostos o filme virgem paga mais do que o seu preço real! Agora acrescente a isso os embaraços que a Prefeitura nos cria, engendrando impostos! E mais que tudo isso: a hostilidade ambiente, a falta e confiança e a descrença...
E vencida uma pausa:
- E, no entanto temos a nosso favor a Natureza privilegiada desta terra que nos oferece os mais vistosos panoramas, sem ser necessário um truque, uma mistificação. Artistas - bons. Os melhores, por sinal: os espontâneos, que são sem saber que eram... Até um esplêndido diretor possuímos- o Gonzaga! Ele tem a arte, a inclinação inata, que veio com ele do berço e que ninguém lhe tira; um cenarista como Paulo Vanderley, e orientadores como Pedro Lima, que foi quem organizou "Barro Humano"; técnicos da qualidade de Alvaro Rocha, que veio resolver o problema da iluminação na nossa filmagem. A energia e firmeza destes rapazes, que vêm norteando o Cinema Brasileiro, cujos frutos já aí estão nos esforços da Phebo, com Humberto Mauro, Edgar Brasil e um grupo de outros, em Octavio Mendes e toda esta geração nova do nosso Cinema.
E abrindo os braços:
- Como se vê tanta riqueza...
E sincero:
-... Que se eclipsa na pobreza do nosso cinema, ainda tão incompreendido...
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Paulo Benedetti, com a sua indiscutível autoridade no assunto, não acredita no triunfo do cinema falado. E não acredita porque ele apaga todo o brilho e ofusca todo o valor do Cinema, que reside exatamente na sua condição de Arte Silenciosa.
E, defendendo, convicto, as claridades da sua opinião:
- No Cinema, o que é apreciável é a síntese. Uma simples expressão que não dura mais que dois segundos diz mais, às vezes, que um romance inteiro! Um olhar traduz - Isso sempre! - sentimentos e desejos humanos que um rosário de frases não traduz! Falado, o Cinema perde, pelo menos, a beleza do silencio, não acha?
Benedetti, noutro tom:
- O Cinema falado eu só o admito em determinados casos, como discursos, descrições...
- Acha que o Cinema atingiu a sua última fase ou acredita que ele ainda se aperfeiçoe mais? tornamos a interrompê-lo.
Ele, francamente:
- Acho que a última fase do cinema ainda está longe: esta da sua música sincronizada é apenas uma delas!
- E essa música sincronizada de agora tem alguma semelhança com o seu velho "comentário musical sincronizado"?, indagamos.
E Benedetti, inalterável:
- Semelhança todos esses sistemas tem, uns com os outros, sem duvida, mas cada um tem o seu segredo.
E contou, com aquela simplicidade que encanta:
- O meu invento, por exemplo, se baseia no compasso musical. Em vez de ser uma máquina mecânica, é um dispositivo que permite a execução da música à vontade do chefe da orquestra.
O maestro, por meio de dispositivos elétricos muito curiosos, controla a música. E estou notando - continuou Benedetti- que se admira de eu me referir a maestro, tratando de filme musicado. Pois bem, o meu invento não dispensa o concurso valioso da orquestra, dela precisando sim, como colaboradora importante, porque lhe refresca os sons e lhe tira das notas todo o reflexo que as notas produzidas em máquinas têm.
Benedetti, a esta altura, se obriga a uma pausa e nos olha para ver se compreendemos a explicação. E certo de que tudo entenderemos, continuou:
- Como já lhe disse, o segredo desse invento está no compasso musical. Debaixo da fita há uma guia especial, que a principio era grossa e que a prática me ensinou a fazer estreita, como é agora. Essa guia marca os trechos musicados dos filmes, pois tudo nele é medido e, de tal modo calculado, que o som só aparece quando é preciso, dando margem a que se aprecie, com os seus verdadeiros característicos, as passagens silenciosas.
E jogando um clarão de palavras elucidativas aos nossos ouvidos:
- Em resumo, é tudo a combinação de um dispositivo da fita com o compasso musical!
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Benedetti, que já transformou em linda e impressionante realidade o seu lindo sonho do comentário musical sincronizado, já está na última fase das suas experiências práticas. Para tanto vem trabalhando há meses a fio com a jovem estrela da "Esposa do Solteiro", de olhos cismadores. Polly de Vienna, que está cantando para o seu último filme "synchronizado" - o invento que ele avaramente guarda para si, e ao qual deu o nome de "cinemetrophono", ou, melhor, "Benephono".
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Benedetti é um livro - um grande livro que nem todos leem. Em sua casa - um grande museu que todos podem ver... Percorrendo-a como fizemos nessa tarde de sombria melancolia, tivemos aos olhos as peças todas de uma grande máquina que aquelas mãos iluminadas movem pelo ideal do Cinema Brasileiro. Se aqui se admira a marcha giratória do cilindro imenso vestido da festa das fitas que nele se abraçam, lembrando os balões que enfeitam as noites de São João, ali nos prendem os olhos os papeis carbono das engrenagens complicadas que multiplicam cópias de filmes... E sem sair daqui, com um simples olhar, descobrimos o alçapão que esconde o trabalho abnegado e silencioso dos obreiros do laboratório lá embaixo, as mãos mergulhadas em ácidos, e vasculhamos o hall do Studio com a artilharia de luz dos seus possantes refletores.
E, assim, cada sala daquelas, com os seus aparelhos e os seus mistérios tem um pouco dessa alma e dessa inteligência de combatente e sonhador que animam Paulo Benedetti.
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Deixamos a casa, que tem o ar exquisito de um mágico, mas não deixamos o homem que ela abriga e inspira, porque Benedetti veio no nosso pensamento, ladeira a fora, vê-lo enchendo de interrupções o nosso espírito, sem que compreendêssemos porque o Destino que é tão caprichoso não fez esse homem cabotino para se saber, ao certo, que mistérios já não descobriu e que maravilhas ele não inventará.
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